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Pesquisa

INVESTIGAÇÃO DAS EXPERIÊNCIAS ANÔMALAS NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA COMPLEXA DE CARL GUSTAV JUNG

Anahy Fagundes Dias Fonseca(1)

Pedro Henrique Costa de Resende(2)

Angélica Salatino de Oliveira(3

Walter Boechat(4)

Gelson Luis Roberto(5)

Adriana Goreti de Oliveira Lopes(6)

Joel Sales Giglio(7)

Zula Garcia Giglio(8)

(1) Médica Psiquiatra, Analista Didata pela Associação Junguiana do Brasil (AJB), filiada à International Association for Analytical Psychology (IAAP), Coordenadora do Departamento de Psicologia Analítica e Espiritualidade da AJB.
(2) Pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora.
(3) Bióloga formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestre, Doutora e Pós-doutora em Genética e Biologia Molecular pelo Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular (PPGBM) da UFRGS.
(4) Médico formado pela Universidade Gama Filho, Diplomado pelo C. G. Jung Institut Zurich da Universitat Zurich e doutor em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Pesquisador no NUBEA - Núcleo de Bioética e Ética Aplicada - da UFRJ, Membro-fundador da Associação Junguiana do Brasil.
(5) Psicólogo, Mestre em Psicologia Clínica pela PUCRS, Analista Junguiano pela Associação Junguiana do Brasil (AJB) e pela International Association for Analytical Psychology (IAAP).
(6) Graduada em Psicologia e Ciências pela Universidade Paranaense, Mestra em saúde coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Doutora em Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Analista Didata pelo Instituto Junguiano do Paraná (IJPR), Membro da Associação Junguiana do Brasil (AJB) e da International Association for Analytical Psychology (IAAP).
(7) Médico, Doutorado em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de Campinas, Pós-Doutor pela University of Kansas, professor associado da Universidade Estadual de Campinas, Analista Junguiano pela Associação Junguiana do Brasil (AJB) e pela International Association for Analytical Psychology (IAAP).
(8) Graduada em Letras Português Inglês pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Mestra em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, Especialista em Arteterapia e em Psicologia Analítica Junguiana pela Unicamp.

Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Dezembro de 2021

01.

Introdução

    A psicologia analítica, também chamada de psicologia complexa, foi formulada pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875 – 1961) ao longo de sua vida e obra. O trabalho de Jung abrange tanto teorias e práticas da psiquiatria e psicologia clínicas, como estudos culturais e transculturais. Dentre os diversos temas de estudo da referida abordagem destacamos nessa pesquisa o fenômeno religioso e espiritual, incluído dentro do contexto mais amplo das chamadas experiências anômalas. As experiências anômalas (EAs) ou espirituais são vivências incomuns, consideradas diferentes das vivências habituais/cotidianas e que fogem das explicações que são comumente aceitas como realidade (Cardeña, Lynn & Krippner, 2013). Alguns exemplos dessas experiências são casos em que estejam envolvidas vivências de percepção extrassensorial, como telepatia (comunicação direta mente a mente), clarividência (conhecimento anômalo de eventos distantes), precognição (conhecimento do futuro), psicocinesia (ação da mente sobre a matéria) e mediunidade (relatos de supostos contatos com consciências desencarnadas ou seres espirituais). Segundo Sommer (2013), não há estudos etimológicos sistemáticos de atributos como “sobrenatural”, “oculto”, “espiritual” ou “anômalo” e seus significados, interrelações e funções ao longo do tempo.

    Esses termos normalmente estão associados a vivências do transcendente, nas quais o indivíduo se vê descolocado de seu padrão de consciência habitual e sente uma expansão de sua percepção de mundo, muitas vezes acompanhada da sensação de sentido ou propósito de vida (Cardeña, 2018; Costa, Siqueira & Resende, 2020).

    Na atualidade, alguns estudos destacam a associação entre as vivências anomalísticas e processos de cura e sentido de vida (Cardeña, Lynn & Krippner, 2013; Krippner, 2007; Sawa, 2020). Diante disso, associações médicas e de psicologia passaram a ter em suas instituições grupos de trabalho específicos sobre o tema. Há incentivo de estudos dessas experiências pela Associação Mundial de Psiquiatria (World Psychiatry Association, 2014), a Associação Brasileira de Psiquiatria (Associação Brasileira de Psiquiatria, 2021), o Colégio Britânico de Psiquiatras (Royal College of Psychiatrists, 2021) e a Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association, 2016) em suas seções de religiosidade/espiritualidade e na Associação Americana de Psicologia, através de suas divisões, Sociedade de Hipnose Psicológica e Sociedade de Psicologia da Religião e Espiritualidade (American Psychological Association, 2021).

    Dentro do contexto junguiano, um dos trabalhos de destaque sobre os fenômenos anômalos foi desenvolvido pela pesquisadora Aniela Jaffé, em sua obra intitulada “Apparitions and precognition: a study from the point of view of C. G. Jung´s analytical psychology” publicada em 1957 e reeditada com o título de An Archetypal Approach to Death, Dreams and Ghosts em 1999 (trabalho sem tradução para o português até o momento; Jaffé, 1957/1999). Nessa obra, é descrito que uma popular revista suíça intitulada Der Schweizerische Beobachter (O Observador Suíço, em português) publicou uma série de artigos sobre sonhos proféticos, coincidências significativas, premonições e visões de espíritos. O editor da revista encerrou os artigos com uma chamada pública aos leitores, para que eles enviassem relatos de experiências semelhantes a serem compartilhados publicamente. Surpreendentemente, a revista recebeu cerca de 1.200 cartas contendo, aproximadamente, 1.500 relatos que poderiam ser conceituados atualmente como anômalos.

    Na época, esse rico material foi colocado à disposição de Carl G. Jung. Ele, por sua vez, confiou esse conjunto de cartas à Aniela Jaffé, uma de suas colaboradoras mais dedicadas, e solicitou que ela escrevesse um livro sobre o tema. Ao lidar com um tema tão controverso, Jaffé (Jaffé, 1957/1999) em sua avaliação inicial, apresentou certos parâmetros que deveriam ser seguidos como: ater-se aos relatos, não os embaçando com interpretações pessoais e precipitadas, sendo necessária neutralidade; certa universalidade da vivência anômala, pois os relatos de sua amostra de cartas vinham dos mais diferentes estratos sociais, grupos etários e de ambos os gêneros; e a importância da ciência superar certos preconceitos, oferecendo suas ferramentas de estudo a temas pouco convencionais. Colaborando com essa perspectiva, Jung (1999) afirma que dois questionamentos principais deveriam ser os norteadores de estudos nessa área: 1) Qual a razão dessas histórias experienciadas desde a antiguidade não perderem seu prestígio na mente das pessoas? 2) E porque elas apresentam uma vitalidade sempre renovada, mesmo em nosso contexto moderno?

    Na avaliação de Jaffé não havia a preocupação de verificar se os relatos eram verídicos e admitiu-se a descrição como legítima (Jaffé, 1957/1999). A preocupação foi com os aspectos psicológicos da teoria de Jung que poderiam oferecer sentido aos eventos. Por exemplo, Jaffé deu grande destaque as experiências em que ocorreram visões de supostos espíritos e agrupa os relatos nas seguintes categorias: visões de figuras luminosas, damas de branco, aparições não identificadas, relatividade do tempo e do espaço, espíritos não redimidos, espíritos sem rosto ou cabeça, promessas não cumpridas, espíritos de pessoas vivas e espíritos que não eram distinguidos de pessoas vivas (Jaffé, 1957/1999). A partir dessa categorização fenomenológica dos relatos, ela passou a avaliação dos aspectos emocionais descritos pelos experienciadores e traçou paralelos com o conteúdo psíquico subjetivo que poderia estar envolvido na experiência (Jaffé, 1957/1999).

    Histórias de aparições de espíritos e percepções para além dos sentidos habituais são vivenciadas com mais frequência do que se supõe (Cardeña, Lynn & Kripnner, 2013). Essas ocorrências não diminuíram de intensidade ao longo do tempo. Há séculos diversos pesquisadores, especialmente da classe médica, têm se interessado sobre estudos acerca dos fenômenos anômalos, sendo que esses eventos contribuíram para a estruturação da moderna psiquiatria e psicologia dinâmicas (Ellenberger, 1970). Conforme argumenta Cardeña, “a evidência anômala é comparável àquela dos fenômenos estabelecidos em psicologia e outras disciplinas, embora não haja uma compreensão consensual para essa evidência” (Cardeña, 2018).

    Em 2017, um grupo de analistas Junguianos do Departamento de Psicologia Analítica e Espiritualidade da Associação Junguiana do Brasil (AJB), outros pesquisadores brasileiros e o Dr. Lionel Corbett da Pacifica Graduate Institute, debateram sobre o trabalho da Aniela Jaffé (1957/1999) e o que a comunidade científica tem de estudos recentes realizados sobre a temática das EAs. A partir disso, sugeriram uma lista de onze aspectos para fundamentar a compreensão dessas experiências e que pode ser utilizada para definir categorias, sistematizar, organizar e aprofundar os estudos nessa área sob a perspectiva da psicologia analítica de C.G. Jung. Essa lista foi, então, divulgada no livro "As Experiências Anômalas na Perspectiva da Psicologia Complexa de C. G. Jung" e será utilizada na metodologia dessa pesquisa (Fonseca & Roberto, 2019; Anexo A).

    Vale salientar que a abordagem analítica, antes de qualquer verificação factual, encara esses eventos como realidades psíquicas, que impactam significativamente seus experienciadores (Jung, 1957/1999). Para Corbett (2019), muitos de nós temos sentido pessoal do sagrado, apesar de nossa alienação das religiões tradicionais, sendo que as EAs podem ocorrer dentro de um contexto religioso, mas não se restringem a esses espaços, pois elas seriam inatas no ser humano. No entanto, a compreensão de seu impacto na vida, assim como os mecanismos de seu despertar e desenvolvimento, necessitam ser mais estudados.

02.

​Justificativa e Objetivos

    As vivências anômalas ou espirituais foram de grande importância para a estruturação da moderna psiquiatria e psicologia dinâmicas (Crabtree, 1993; Ellenberger, 1970). Não somente Jung se interessou por essa temática, mas outras figuras ilustres do meio médico como William James, James Jackson Putnam, William Macdougall, entre outros. Na atualidade, esse tema foi foco de compêndios que avaliaram os diversos tipos de experiências que estão contidas nesse campo maior de vivências anômalas, como o elaborado por Cardeña, Lynn e Krippner (2013). Os autores destacam entre seus objetivos a abordagem do aspecto clínico das experiências anômalas, ou seja, como esses eventos podem ser abordados por terapeutas e quais seus impactos sobre a vida de seus clientes (Cardeña, Lynn e Krippner, 2013)

    O levantamento de casos espontâneos de ocorrências anômalas possui um grande valor para a pesquisa científica. Apesar de na atualidade existam outros recursos mais sofisticados de investigação, os relatos de caso podem contribuir para a sistematização das características da ocorrência dos fenômenos e, através de paralelos comparativos entre eventos, estabelecer hipóteses para o seu surgimento e desenvolvimento, proporcionando mais estudos futuros (Fonseca & Roberto, 2019).

    A partir do exposto, o objetivo principal dessa pesquisa é dar prosseguimento ao trabalho iniciado por Jaffé e compreender as experiências espirituais de indivíduos na atualidade pela perspectiva da psicologia complexa de Carl G. Jung.

    Nesse contexto, os objetivos específicos são:

1. Coletar relatos de experiências anômalas de indivíduos no Brasil;

2. Identificar eventos anômalos compartilhados entre os diferentes relatos;

3. Propor categorias de classificação para as experiências anômalas compartilhadas nos relatos coletados, seguindo a psicologia complexa de Carl G. Jung;

4. Verificar se existem diferenças culturais e/ou temporais entre os relatos coletados e as experiências relatadas e categorizadas por A. Jaffé no livro An Archetypal Approach to Death, Dreams and Ghosts (1999);

5. Verificar se o desenrolar ou conclusão desses relatos levaram seus portadores a reflexões ou auxiliaram de alguma forma em seu desenvolvimento pessoal e sentido de vida.

03.

Referências

American Psychiatric Association. (2016) Spirituality, Religion and Psychiatry Caucus. Disponível em: <https://spiritualityreligionpsychiatrycaucus.com>. Acesso em: 14 de dez. de 2021.

American Psychological Association. (2021) APA Divisions. Disponível em: <https://www.apa.org/about/division>. Acesso em: 14 de dez. de 2021.

Associação Brasileira de Psiquiatria. (2021) Comissões. Disponível em: <https://www.abp.org.br/comissoes>. Acesso em: 14 de dez. de 2021.

Cardeña, E. (2018). The experimental evidence for parapsychological phenomena: A review. The American Psychologist. 73(5): 663 – 677. Doi: 10.1037/amp0000236.

Cardeña, E.; Lynn, S. J. & Kripnner, S. (2013). Variedades da Experiência Anômala: Análise de Evidências Científicas. São Paulo: Atheneu.

Corbett, L. (2019). A message from Dr. Lionel Corbett. Disponível em: <https://psycheandthesacred.org/mission>. Acesso em: 14 de dez. de 2021.

Costa, M.; Siqueira, J. & Resende P.H.C. de. (2020). Psicoterapia integrada à espiritualidade: aplicações práticas. HU Revista online. 44(4): 481 – 489. Doi: 10.34019/1982-8047.2018.v44.25827

Crabtree, A. (1993). From Mesmer to Freud: Magnetic Sleep and the Roots of Psychological Healing. New Haven and London: Yale University Press.

Ellenberger, H. F. (1970). The Discovery of the Unconscious: The History and Evolution of Dynamic Psychiatry. New York: BasicBooks.

Fonseca, A.F.D; Roberto, G.L. (org.) (2019) As Experiências Anômalas na Perspectiva da Psicologia Complexa de C. G. Jung. Brasília: Self Editora.

Jaffé, A. (1957). Apparitions and precognition: a study from the point of view of C. G. Jung’s analytical psychology. New York: University Books.

Jaffé, A. (1999). An Archetypal Approach to Death, Dreams and Ghosts. Zurich: Daimon Verlag. (Originally published in 1957).

Jung, C. G. (1971). A Natureza da Psique. Petrópolis: Editora Vozes Ltda.

Jung, C. G. (1999). Prefácio. In: Jaffé, A. An Archetypal Approach to Death, Dreams and Ghosts. Zurich: Daimon Verlag. (Originally published in 1957).

Krippner, S. (2007). Lights, sights and Brazilian healing sites. 24th annual meeting on Shamanism and Alternative Modes of Healing, Santa Sabina Center, Dominican University, 1-6.

Minayo, M. C. S. (2017). Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Revista Pesquisa Qualitativa, 5 (7): 1 – 12.

Royal College of Psychiatrists. (2021) Special Interest Groups - Spirituality. Disponível em: <https://www.rcpsych.ac.uk/members/special-interest-groups/spirituality>. Acesso em: 14 de dez. de 2021.

Sawa, R. J. (2020). Spirituality and Healing: Results of a Ten-Year Study of Spiritual Healers. Ultimate Reality and Meaning. 37(3-4): 142–157. Doi: 10.3138/uram.37.3-4.142

Sommer, A. (2013). Crossing the boundaries of mind and body: Psychical research and the origins of modern psychology. Doctoral Thesis. University College London. London/UK.

World Psychiatry Association. (2014) Religion, Spirituality & Psychiatry. Disponível em: <http://www.religionandpsychiatry.com>. Acesso em: 14 de dez. de 2021.

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